segunda-feira, 19 de março de 2012

DÔDI

Ela era uma boa mãe. Interessava-se pelo desempenho do filho na escola, ia a todas as reuniões, se esmerava na elaboração de uma dieta equilibrada e saudável, ia às peças de teatro infantil premiadas, a filmes que não subestimavam a inteligência das crianças e lia todas as noites, para embalar o sono de seu pequeno, livros que eram elogiados e recomendados por pedagogos. A rotina de mãe solteira somente às vezes lhe era pesada. Ela havia eleito aquele menininho como o homem de sua vida e assim seria. Quando estava em algum projeto mais difícil (abandonou o emprego de horário integral para trabalhar como designer free-lancer em casa) ela virava noites, se entupia de café com guaraná, maquiava as olheiras, mas não furtava de seu filho seu tempo e atenção.

O pai da criança morava nos Estados Unidos e era casado com uma americana que, com chantagens emocionais e financeiras, afastou-o definitivamente do filho brasileiro. O caráter duvidoso do pai, sempre atrás de vida fácil, era a desculpa para que Letícia não se amargurasse. O menino era seu orgulho e ela faria tudo para que ele fosse o oposto do pai: um profissional brilhante e responsável, daqueles que são referência em sua área, que dão palestras e entrevistas. E que, conseqüentemente, teria grande sucesso financeiro. Dinheiro é a recompensa por um trabalho bem feito, nunca deve ser o objetivo principal de alguém decente, filosofava ela. Quando o pai morreu, misteriosamente, Letícia teve um misto de alívio e preocupação. Ela sonhava que o pai de Marquinhos daria uma força para que o menino fizesse faculdade em uma escola americana, possivelmente Harvard.


Um grande pato Donald foi o último presente enviado pelo pai, através de um amigo. O menino instantaneamente se apaixonou por aquele boneco de chapéu de marinheiro que chamava de Dôdi. Dôdi era arrastado, amassado, molhado e vivia cheio de manchas de comida ou coisa pior, por isso dormia todo dia dentro da máquina de lavar. Quando não amanhecia limpo e seco o dia prometia começar mal. Com os anos, Dôdi havia virado não a lembrança do pai, mas um membro inerte da família, tinha lugar fixo na mesa e era mais amado que a avó com alzheimer. Marquinhos não pensava nele como um brinquedo, era seu melhor amigo, dependia dele emocionalmente. Foi às primeiras duas semanas de aula acompanhado de Dôdi até que a professora se cansou de ter que dar beijinhos de despedida naquela pelúcia suja. Para Letícia, Dôdi era como uma mistura do coelho da Mônica com Chuck, o brinquedo possuído. Tinha medo de que ele começasse a falar a noite, contando os detalhes ignorados de sua morte violenta. Agora além de enfiar Dôdi na máquina, dava duas voltas na tranca da porta que separava a cozinha da área.


Depois de ver Toy Story, animação onde os brinquedos têm vida apenas longe dos olhos humanos, Letícia surtou. Aproveitou que Marquinhos não estava tão obcecado pelo boneco - acabara de ganhar um autorama - e entregou Dôdi ao primeiro menino que a abordou no sinal de trânsito. Nessa noite se sentiu como aquelas mães da praça de maio que finalmente enterram os restos mortais do filho. Ao acordar, chorando muito, foi ao quarto de Marquinhos para beijá-lo e tentar diminuir seu remorso. Teve um calafrio e uma dor no peito ao encontrá-lo abraçado a Dôdi. O susto causou
-lhe um infarto tão forte que sequer entendeu que havia tido um sonho.


Alguns anos depois o pai de Marquinhos volta ao Brasil com nome e rosto diferentes. Está milionário por ter conseguido enganar
a companhia de seguros com o apoio de sua comparsa. Procura seu filho e, chantageado pelo avô, que alegava ter gastado muito dinheiro com o menino, diz-lhe que mandara quinhentos mil dólares dentro de um boneco de pelúcia há quatro anos e que provavelmente estavam em alguma conta secreta da falecida.

Um comentário:

pensandoemfamilia disse...

Ironia do destino, não é mesmo. Gostei do seu conto. Há muitos ítens para se refletir sobre os papéis de cada um destes personagens.
Abraços.

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